24 junho, 2010

A casa

Belas árvores de flores vermelhas que tomam conta do jardim, ninguém vem aqui faz mais de um ano e o mato já começou a crescer. A solidão sobe, verde e úmida, pelo telhado desta casa e invade tudo. Os vidros da janela estão tão sujos e molhados que não se pode mais olhar para lá dentro. Os musgos já cobriram toda a parede, porque ninguém faz nada para que isso mude. Os móveis estão todos podres, e não é preciso vê-los para saber, pois o mau-cheiro que exalam sente-se daqui do jardim. E o mato não para de crescer e de criar afiados espinhos que pinicam e furam nossa pele. Então mandem dizer, para todos os que vierem aqui visitar, que ninguém está em casa e não quer recebe-los.

Linhas retas, tortas e circulares

Andando em círculos dou voltas em mim mesma. Portanto, o melhor a se fazer é andar em linha reta. Lá vou eu. Dou um passo, dois e três. Cá estou de novo? Não, isto não está certo. Vou outra vez. Dou um passo, dois e três. De volta ao mesmo lugar? Que droga! Então vou correndo que dá certo. Um, dois, quatro, sete, nove. Ufa! Finalmente est... Ah, não! Ainda estou aqui? Desisto! Ficarei muda e quieta, numa paralisia proposital de mim mesma. Entretanto, assim que eu paro, escuto ruídos leves. Algo está a se mexer. Observo perplexa e frustrada o mundo e os outros seres, que eu não sabia que existiam até este momento, quase todos - com exceção dos que andavam em felizes linhas tortas, a girar tolamente no mesmo lugar.

Pássaros a voar

Num galho de uma árvore, que tinha grandes flores vermelhas, um passarinho pousou e, em seguida, outro, mais outro e mais outros. Aí um voou e também outro, mais outro e mais outros. Também pousaram mais alguns que não eram tão diferentes daqueles primeiros. Assim se seguia: pousava e saia. Tudo tranqüilo num mesmo som de pia-pia. Piava um passarinho lá e outro cá e eu só olhava, sem incomodar, mas num momento resolvi também piar. Levantei-me, mas era grande demais e certamente assustadora, pois todos eles foram embora e eu não escutei mais nenhum pio.

Criska

Criska, quinta-feira, 22 de abril de 2010.

Querida Iraci,

Cheguei aqui em Criska já faz três dias e estou bem.
Estou um pouco assustada, é claro, pois nunca estive num lugar assim antes.
Tão diferente do nosso povoado é este lugar. A mata é fechada, úmida, verde e exuberante, mas ao mesmo tempo é sombria e assustadora. Digo isto, porque este lugar me dá medo. Ando e ando faz três dias e não consigo sair do lugar. Tudo se repete. Os bichos são sempre os mesmos a passar e os habitantes humanos são tão pequenos que se confundem com os macacos que me olham do topo das árvores. Todos parecem me olhar, observar, mas, até agora, nenhum deles me ofereceu perigo. Na verdade, sinto-me como num sonho, pois tudo me parece fugidio ou etéreo. Eu toco nas folhas e flores das árvores, mas não sinto nada. Percebi também que a noite até agora não passou, e já não acredito mais que ela virá. Talvez eu esteja num lugar mágico ou, provavelmente, num pesadelo.
Não creio que vou conseguir sair daqui sozinha, por isto escrevo esta carta. Peço a sua ajuda, porque eu estou bem, não sinto fome nem sede, e nada de mal me acontece, mas eu não aguento mais essa angustia que açoita meu coração, o medo de ter chegado a lugar nenhum e daqui jamais poder sair.
Quero voltar.

Abraços.

O vento e a solidão

O vento da rua uiva às cinco da tarde. Hoje choveu o dia inteiro. Pessoas vão e vem, fugindo da chuva, e se escondem em suas casas. Algumas se secam com uma toalha gasta e outras apenas olham pela janela, felizes por se livrarem do frio que faz lá fora. O vento forte, que balança as árvores, junto ao frio, a chuva e os trovões incansáveis afastam a vida que antes corria lá fora. Agora o que sobrou são apenas folhas secas caindo no chão da calçada vazia. Ninguém está lá. Todos fugiram para as suas casas quentinhas, fecharam bem as janelas e trancaram as portas para o frio não entrar, para o uivo do vento que canta a solidão ficar lá fora, longe, sozinho.

21 junho, 2010

Tímido grão

Todos nós somos grãos, pois nascemos potencialmente belos e fortes, dotados de uma capacidade imensa de amar e se relacionar com os outros. O extrovertido dará origem a uma árvore que chamará atenção pela sua exuberância e suculência. Já o tímido vem de um grão que o vento, ninguém sabe o porquê, levou pra longe do cuidadoso jardineiro e de todas as outras flores. Brota então uma plantinha delicada que cresce muito devagar, tanto que quase sempre passa despercebida pelos outros.

Deserto

Hoje é domingo e já é tarde. Estou voltando pra casa sozinha debaixo do meu guarda-chuva que me protege de uma grande tempestade. O vento não para de uivar e de tentar me derrubar. Acho que quer me levar pra longe, mas eu resisto e sigo em frente. Não posso desistir agora, eu tenho que caminhar mais um pouco, eu me esforço pra chegar em casa, mas o vento não deixa. Eu quero voltar pra casa, pra minha cama quentinha, para os braços do meu amor, mas sinto que estou me afastando, caminhando pra trás sem querer, e faço muita força para mover as minhas pernas na direção certa. E o vento uiva, grita comigo, briga e arranca o meu guarda-chuva de mim numa lufada. Finalmente eu caio, estou só num deserto e não posso mais me mexer. Estou morta.